terça-feira, 30 de junho de 2009

Os (a)normais

Reproduzo abaixo a coluna do João Pereira Coutinho (que sempre vale a leitura, independentemente da concordância com suas opiniões), que de maneira bem-humorada e ácida faz uma crítica às tentativas de se "normalizar" todo e qualquer indivíduo que apresente algum comportamento tido como desviante. Breve comentário abaixo.


JOÃO PEREIRA COUTINHO


A TIMIDEZ É doença? Uma amiga minha acredita que sim e procurou ajuda especializada. Entrou numa consulta de psiquiatria e, como normalmente acontece, nunca mais de lá saiu. Um ano depois, e algumas sessões depois, existem progressos: ela consegue estar num "evento social" e conversar "naturalmente" com as pessoas em volta. A terapia ajudou (muito). A medicação ajudou (muitíssimo): um coquetel de antidepressivos e ansiolíticos que a obrigaram a sair da concha e a conhecer o mundo.
Escutei tudo isso ao almoço e não pude deixar de pensar como o mundo é um local estranho. Tempos houve em que certos comportamentos pessoais eram parte da diversidade humana. Uma pessoa tímida era simplesmente uma pessoa tímida. Uma pessoa expansiva era simplesmente uma pessoa expansiva. Nem todos podemos ser borboletas. Alguns acordam para o mundo e descobrem, ao contrário do que Kafka dizia, que os pequenos insectos também têm o seu encanto.
Gradualmente, a psiquiatria começou a ter uma palavra sobre o assunto, procurando "regular" ou "normalizar" a variedade de que somos feitos. Não é preciso ter lido Foucault para acreditar nessa história, até porque o radicalismo de Foucault não ajuda e só atrapalha. Basta olhar em volta.
Basta olhar para amigos tímidos, ou então para crianças hiperativas (ou deliciosamente preguiçosas), e encontrar neles um potencial doente, um potencial demente, a exigir intervenção psicofármica. Uma parte da medicina moderna acredita na ideia, pessoalmente aberrante, de que deve existir um padrão de "equilíbrio comportamental" para definir um ser humano harmonioso, realizado e feliz.
O problema é que poucos correspondem ao padrão. Depois desse almoço, regressei a casa, disposto a investigar o crime. E então encontrei, por feliz coincidência, o relato precioso da última reunião da American Psychiatric Association, em São Francisco. Segundo parece, essa vetusta agremiação de luminárias discutiu as últimas alterações ao manual de referência da especialidade, o "Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder". Publicado desde 1952, e revisto de década em década, o manual pretende agora incluir novas "doenças" mentais, em sintonia com o espírito do tempo. Exemplos? Vários.
Para começar, existem "doenças" relacionadas à alimentação. É o caso da "binge-eating disorder" e da "night-eating syndrome". Em linguagem de gente, a primeira refere-se a uma compulsão excessiva para comer mais do que o estritamente necessário; a segunda pretende diagnosticar, e tratar, o gosto perverso por assaltar a geladeira depois da meia-noite. Mas a lista de novas "doenças" não fica por aqui.
O vício pela internet e pelo e-mail ("internet addiction"); o gosto por vários parceiros sexuais, em sucessão ou em simultâneo ("sex addiction"); a compulsão "terapêutica" por compras ("compulsive shopping"); a fúria incontrolada e muitas vezes injustificada ("embitterment disorder"); o preconceito perante a "diferença" ("pathological bias"); e mesmo a tendência idiossincrática para colecionar materiais diversos ("pathological hoarding"), nada escapa à inquisição psiquiátrica.
Leio esse admirável cardápio e sorrio de espanto. Ou de medo. Ou de ambos. Razão simples: de acordo com a bíblia da psiquiatria mundial, eu sou objectivamente um demente. Nada que surpreenda os meus leitores mais regulares, é certo. Muitos menos as pessoas que partilham a minha existência.
Mas algo me surpreende. Eu nunca imaginei que a minha gula (diária e noturna); os meus acessos de fúria (justificados ou não); os meus recorrentes preconceitos (contra políticos, adolescentes ou feministas); os meus desportos mais íntimos (que não incluem a monotonia); a forma criminosa como gasto fortunas (em camisas, sapatos, ternos); e a minha tendência para guardar obsessivamente os mais ridículos objetos (jornais antigos, próteses, peças de lingerie alheias), fosse motivo para tratamento médico especializado.
Prometo marcar consulta. E prometo emergir das sessões um homem novo: vegetariano, ambientalista, tolerante, multicultural e, no duplo sentido da palavra, com espírito de missionário.
No mundo moderno em que vivemos, a única doença tolerável é mesmo a normalopatia.


Se é verdade que de um lado existe um discurso que pretende "normalizar" geral e indiscriminadamente qualquer comportamento "considerado" desviante, na tentativa de criar uma "ditadura normopata", é bem verdade que há uma outra corrente que advoga que a loucura seria uma construção social, como manifestação de uma ordem instituída com o objetivo de estigmatizar o chamado louco.

Curioso que em ambas as posições há sempre um "sábio" estabelecendo um modelo ideal de homem e sociedade. Em que pese aquela ladainha de que somos entes políticos, e que qualquer posicionamento revela uma ideologia por trás, o fato é que qualquer que seja o caso perde-se de vista o eventual sofrimento daquela pessoa que tem nome, sobrenome e identidade própria.

Basicamente, condenar unilateralmente alguém a ser tratado ou não, por mais altruísta que possam ser suas motivações, com base em teorias, protocolos, estatísticas, ideologias é de uma obtusidade só. Ainda que, excepcionalmente tratamentos tenham que ocorrer de forma compulsória, pela total incapacidade do indivíduo se manifestar de maneira consciente, assumindo as consequências de suas escolhas.

Por mais lugar comum que seja, a diversidade é enriquecedora, principalmente quando se desenvolve livre da intolerância dos tolerantes.



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